Em princípios de 1857, o livreiro
E.Dentu, amigo do Professor Hyppolyte Léon Denizard Rivail, desde os idos de
1828, havia encaminhado os originais da primeira obra espírita compilada pelo
referido professor à tipografia de Beau, situada em Saint Germain em Laye, 23 Km a oeste de Paris.
O proprietário da tipografia
presidia normalmente os trabalhos de revisão e aprimoramento do que viria a ser
a primeira obra da Codificação Espírita, quando algo inesperado sucedeu-se: sua
desencarnação.
O fato logo
repercutiu negativamente no andamento da obra, já que os dois filhos do
tipógrafo relegaram-na ao esquecimento ao assumirem o posto do pai. Os apelos
do Prof. Rivail não se fizeram ouvir e os filhos limitavam-se a dizer que a
feitura da edição iria demorar muito.
Valendo-se de
inspiração superior, o Prof. Rivail resolveu por bem solicitar o concurso da
viúva do tipógrafo. Deliberou visitá-la em sua residência e esclareceu-lhe
sobre o que se passava. A viúva, tomada de simpatia pela causa, leu os
originais de “O Livro dos Espíritos”. Sentindo-se reconfortada em sua dor
moral, e usando de sua autoridade perante os filhos, escreveu sobre os
originais a ordem irrevogável: “TRÉS URGENT (URGENTÍSSIMO)”. A tipografia logo
iniciou a impressão e o indispensável acabamento dos dois mil primeiros
exemplares, em formato grande, com 176 páginas. Raiava o inesquecível
dia 18 de abril daquele ano de 1857, e os editores, representados por Dentu,
finalmente trouxeram a lume, na praça parisiense, a auspiciosa edição. A
Cidade-Luz acabava de acolher, então, em seu seio, a luz mais brilhante e
poderosa de sua historia.
Amandine Aurore Lucien Dupim (França, 1804-1876) |
Neste mesmo dia,
conceituado jornal parisiense anunciava a visita a Paris da célebre escritora
francesa, de pseudônimo George Sand, chamada Amandine Aurore Lucien Dupim*. A
extraordinária mulher, literata das mais notáveis, era dona de uma personalidade
bastante forte e de uma cultura invulgar, acostumada que estava ao convívio de
amigos da vanguarda européia, como Victor Hugo, Franz Liszt e Eugene Delacroix.
Fora, inclusive, a companheira, por longos anos, de Frédéric Chopin. Viera a
Paris, como crítica de arte, para assistir a uma famosa peça teatral que
analisava a personalidade feminina.
Amigo da escritora
desde muitos anos, ele havia lido com atenção a referida nota jornalística.
Eles, que já haviam trocado tantas ideias espiritualistas, certamente poderiam
encontrar-se de novo. Seria gratificante a ele saber a opinião de Mme. Sand
sobre “O Livro dos Espíritos”.
E assim foi que,
andando pelas ruas de Paris, com o primeiro exemplar do livro nas mãos e, por
isso, pleno de alegria, o professor avistou a carruagem de Sand, reconhecendo-a
em seu interior. Imediatamente acenou e, cumprimentando-a, disse:
- Madame Sand, venho oferecer-lhe o primeiro livro da
Doutrina dos Espíritos!
Ao que ela,
surpresa, retrucou:
- Ah, Professor Denizard – ela assim o chamava – eu sei
que o senhor está fazendo experiências verdadeiras. Eu mesma sou delas
testemunha, porque desde quando muito jovem, observava alguém, um vulto, a me
acompanhar o tempo todo, a me espreitar! De pequena, lutei muito para que os demais
compreendessem o que se passava comigo, mas, em vão!... Bem, não nos importemos
com as incompreensões, e sigamos avante!...
O senhor está de parabéns, professor!
O Prof. Rivail agradeceu-lhe a acolhida
fraterna, dizendo-lhe que estimaria muitíssimo ver sua apreciação da obra. Ela
lhe respondeu, afável:
- Professor Denizard, guarde para si este exemplar, do
qual não sou digna. Alegrar-me-ei bastante em opinar sobre ele mais tarde,
quando o tempo me permitir. Atualmente, tenha a vida atribulada de compromissos.
Prometa enviar-me outro volume posteriormente.
A 20 de maio do
mesmo ano, Allan Kardec endereçava-lhe expressiva carta, com um exemplar de “O
Livro dos Espíritos”, em anexo. Ela o recebeu e leu com atenção e, três meses
depois, procurando o amigo, falou-lhe:
- Professor Denizard, gostaria muito de acompanhá-lo em
suas demandas por estas ideias renovadoras de nosso mundo, mas sinto que
somente iria atrapalhar seu livre desenvolvimento. Minha condição de mulher,
com conceitos e comportamentos revolucionários, não ajudaria em nada a verdade
que esta filosofia apresenta. Recuso-me, pois, a escrever qualquer artigo sobre
este livro de luz. Eu, certamente, apenas contribuiria para obnubilá-lo. Conto
com a sua compreensão e prometo, outrossim, colaborar com o senhor no que
estiver ao meu alcance.
Dez anos mais
tarde, na edição de janeiro de 1867 da Revista Espírita, sob o título “Os
Romances Espíritas”, Allan Kardec comentaria algumas obras literárias de Mme.
George Sand, nas quais, segundo ele, os enredos e os pensamentos eram
inteiramente espíritas.
Allan Kardec e Madame Sand novamente se
encontraram, somente em 18 de abril de 1957, cem anos decorridos sobre aquele
encontro nas ruas de Paris e, desta vez, despojados da veste corporal. Ela foi
um dos Espíritos de elite que compareceu à grande solenidade espiritual, em
homenagem a Allan Kardec, levada a efeito na Vida Maior, por ocasião do
primeiro centenário de “O Livro dos Espíritos.”
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Nota:
(*) Aclamada romancista e memorialista francesa, considerada uma das precursoras do feminismo.
(**) Relato baseado em
conversa com o médium Chico Xavier, publicado no livro "Mandato de amor", pela União Espírita Mineira.
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